Tácio Lacerda Gama[1]
1. Uma metáfora como hipótese; 2. Plano do artigo: analisar criticamente a extrafiscalidade exercida pelo Estado Brasileiro em 2020; 3. Diagnóstico lento e medidas satisfatórias; 4. Proposições corretas, mas parciais: a extrafiscalidade agora e no futuro próximo como principal instrumento de combate à Pandemia causada pela COVID-19; 5. Proposições corretas, mas parciais: a extrafiscalidade no âmbito federal, estadual e municipal; 6. Proposições corretas, mas parciais: as melhores práticas internacionais: medidas extrafiscais já adotadas e em estudo para enfrentamento da pandemia em todo o mundo; 7. Proposições corretas, mas parciais: análise crítica da extrafiscalidade no combate aos efeitos da Pandemia; 8. Conclusões; Por fim...
1. Uma metáfora como hipótese
“Geni e o Zepelim” é uma das mais eloquentes metáforas da ingratidão. Esta personagem da música de Chico Buarque de Holanda, Geni, é reiteradamente criticada por alguns por sua excessiva generosidade emocional. Estava sempre disponível para todos, todos mesmo, inclusive os mais excluídos. Um comportamento assim entregue não se ajustava a padrões idealizados humilde lugarejo que vivi. Por isso, “alguns” gritavam, insistentemente, para “jogar pedra na maldita Geni”. Um dia, surgiu uma grande ameaça, que colocou a vida de todos em risco. Foi Geni quem conseguiu lidar com a ameaça, justamente por ser excessivamente generosa, ter de sobra aquilo que era tão criticado. Vencida a crise, tendo partido a ameaça no Zepelim, todos começaram a festejar. Porém, ainda em meio às comemorações, os de sempre voltaram a falar “joga pedra na Geni”.
Que teria acontecido àquele vilarejo sem Geni? O que deveria ter sido a redenção de Geni, entrou para o imaginário popular como um exemplo máximo de ingratidão.
A extrafiscalidade tem sido a Geni do Sistema Tributário brasileiro. Sua hipercomplexidade, seu contencioso estratosférico e os riscos e incertezas excessivas são alguns dos problemas alegadamente causados pela extrafiscalidade. Alguns, não entendendo o seu especial modo de existir, se sentem à vontade para “jogar pedras”.
Há, sem dúvida, excessos no exercício da extrafiscalidade. Por isso, é urgente dar efetividade à regulação que já existe. É necessário separar o seu uso lícito do ilícito. Mas não se deve alterar a Constituição da República para impedir que a União, Estados, Distrito Federal e Municípios usem o tributo para implementar políticas setoriais.
Diferente da história de Geni, que era metafórica, a Pandemia de 2020 é uma ameaça real, sem precedentes na capacidade de causar danos à saúde das pessoas e à economia. Graças às múltiplas competências distribuídas para os integrantes da Federação, o Estado brasileiro editou uma das mais poderosas reações tributárias de que se tem notícia.
Nos últimos 3 meses, a extrafiscalidade foi um poderoso instrumento do Estado Brasileiro. Muitos milhões de cpfs e cnpjs foram claramente favorecidos pelas dezenas de atos normativos editados em todos os âmbitos da Federação. É fácil perceber que, muito embora existam críticas consistentes, a extrafiscalidade reduziu o custo tributário e foi responsável pela manutenção de milhares de negócios e pela preservação de milhões de empregos. Quando superada a pior fase desta Pandemia, será simples comprovar que a extrafiscalidade serviu a muitos e que, portanto, deveria ser preservada, melhor compreendida e valorizada.
Entretanto, mesmo ainda estando longe do fim, já há quem faça defesa pública e entusiasmada do fim da extrafiscalidade na tributação sobre o consumo. Os argumentos são os mesmos de antes da Pandemia, acrescentado o ardiloso “só a reforma tributária pode melhorar o país!” Isso, porém, sem oferecer qualquer pista para que aqueles que leiam as propostas vejam nexo de causalidade entre reformar o sistema e promover desenvolvimento econômico.
Pretender acabar com a extrafiscalidade sobre o consumo, depois de tudo que se viveu com a Pandemia, é como voltar a jogar pedra na Geni, após a partida do Zepelim. Antes, se deve fazer o contrário: entender, estudar e regular a extrafiscalidade. E divulgar cada um dos atos e avaliar seus efeitos no combate à grave crise gerada pela Pandemia de 2020. É relevante perceber como o tributo é um poderoso instrumento de políticas setoriais.
Por isso, seja na crise ou fora dela, a competência para usar tributos na promoção de desenvolvimento deve ser defendida como instrumento fundamental de todos os entes que integram a Federação. Não podermos dar à extrafiscalidade o tratamento dispensado à Geni.
2. Plano do artigo: analisar criticamente a extrafiscalidade exercida pelo Estado Brasileiro em 2020
Toda política setorial pode ser avaliada sob três perspectivas: precisão do diagnóstico; qualidade das propostas e efetividade da execução. Passados 3 meses do início da Pandemia, já existem elementos para dizer o seguinte: o diagnóstico do problema foi lento, mas identificou o aspecto fundamental do problema. Foi lento, porque as autoridades constituídas afirmaram veementemente que não haveria política anticíclica nesta crise e que a melhor resposta do Estado brasileiro seria fazer as reformas. Justamente as reformas que acabavam com a possibilidade de resposta imediata por meio de tributo. Só em março, quando o mundo todo já conhecida há semanas os efeitos da crise, é que se buscou fazer algo. Porém, quando se entendeu o problema e sua gravidade, houve acuidade em perceber que a razão da crise poderia ser sintetizada em: redução de receita com manutenção de custo.
Propostas eficientes deveriam estar orientadas pelos seguintes objetivos: reduzir ou diferir despesas (inclusive as tributárias), estimular a manutenção de contratos de trabalho e baratear a contratos de empréstimo, necessários em face da redução de receitas gerada pela determinação de contenção social. E isso aconteceu quase plenamente. Digo quase, porque foi mantida a tributação sobre lucro, que deveria ter sido diferida.
Por fim, há um aspecto da execução que é digno de nota. A despeito de ter tido uma medida pro ativa na edição e atos normativos, não houve, especialmente por parte do Governo Federal, inciativas para divulgar tais medidas. Houve publicação, mas ausência de sistematização e divulgação em massa. O momento é especial e deveria ter havido intensa promoção do que ainda hoje é oferecido às empresas que precisam.
É sobre isso que se falará adiante.
3. Diagnóstico lento e medidas satisfatórias
A Pandemia em 2020 gerou uma paralização da atividade econômica em escala global. Todos os negócios, com a ressalva dos chamados estratégicos, tiveram que suspender suas operações. Na maior parte dos casos, houve abrupta redução de receitas, com manutenção das despesas, provocando crescimento vertiginoso de prejuízo e, nos piores casos, fechamento de empresas. Na sua expressão mais simples, posso indicar que o efeito da Pandemia sobre a atividade econômica é o resultado da bombástica equação: redução de receita com manutenção ou até aumento de despesa.
Que fazer então? Compensar a receita perdida com empréstimo ou reduzir as despesas. Com efeito, posso afirmar que a crise do setor produtivo pode ser combatida, neste primeiro momento, por essas duas frentes.
Esta segunda medida – a redução ou diferimento de despesas – pode ser implementada por meio de instrumentos tributários variados. Estes instrumentos, como outros que concorrem para a mesma finalidade, permitem preservação de caixa e, dessa forma, viabilizam a sobrevivência de empreendimentos.
Num cenário como o que estamos vivendo, falar em reduzir despesas não é tarefa simples. Cortar despesas significa extinguir relações trabalho, cancelar contratos com fornecedores, parceiros e, até, não pagar tributos. Objetivamente, estamos falando do sustento de famílias, da manutenção de negócios e do próprio financiamento do Estado. Cortar despesas, por isso, não é algo simples de ser feito.
É fundamental, por isso mesmo, saber que, muito provavelmente, viveremos dois momentos: um de interrupção da atividade econômica em virtude do isolamento social recomendado por Estados e Municípios, o “fique em casa” defendido pela OMS. Mas haverá, também, um segundo momento que envolverá um conjunto de estímulos para normalização da economia.
Momentos distintos exigem soluções igualmente diversas. Só assim se pode reduzir os custos quando há baixa de receitas e estimular o investimento mediante o adequado arranjo de incidências tributárias. É desta forma que se pode fomentar a atividade produtiva, reduzir o desemprego, assegurar a todos os brasileiros os meios de existência digna, com progressivo aumento de arrecadação e, no horizonte previsível de tempo, o reequilíbrio da atividade financeira do Estado.
4. Proposições corretas, mas parciais: a extrafiscalidade agora e no futuro próximo como principal instrumento de combate à Pandemia causada pela COVID-19
Com base no arranjo de competências postas à disposição dos integrantes da Federação, temos as seguintes possibilidades:
Diferimento de tributos sobre receita;
Diferimento de tributos sobre lucro;
Diferimento de tributos sobre patrimônio;
Diferimento de tributos sobre a folha;
Desoneração de tributos aduaneiros sobre bens e serviços necessários ao combate da Pandemia;
Desoneração de tributos incidentes na saída de bens essenciais ao combate à Pandemia, considerando, inclusive, o princípio da seletividade;[2]
Desoneração serviços necessários ao combate da pandemia;
Redução de tributos incidentes sobre o crédito;
Suspensão de obrigações acessórias federais, municipais e estaduais;[3]
Prorrogação do vencimento de certidões negativas de débito em âmbitos federal, estadual e municipal;
Suspensão de prazos processuais administrativos e judiciais;
Facilitação da compensação de prejuízos fiscais na apuração de tributação sobre o lucro;[4]
Ampliação do rol de produtos e serviços que dão direito a crédito na apuração de tributos não cumulativos, considerando-se o ambiente de combate à epidemia e de reestruturação da atividade econômica;
Ampliação do rol de despesas aptas a ser deduzidas na apuração de tributação sobre a renda, também tendo em vista o ambiente de combate à epidemia e de reestruturação de atividades;
Facilitação e diminuição do tempo necessário à compensação e restituição de tributos federais, estaduais e municipais;
Facilitação dos canais de atendimento e de comunicação com as administrações tributárias;
Disponibilização de meios digitais simplificados e de fácil acesso para cumprimento de obrigações acessórias e realização de pedidos de restituição e compensação de tributos.
A análise de cada um destes itens passa pelo texto constitucional, pela compreensão das boas práticas desenvolvidas pelos demais países e por aquilo que, pragmaticamente, é útil para assegurar a continuidade dos negócios com preservação de todos os direitos e deveres a eles inerentes.
Num segundo momento, os entes federativos deverão adotar medidas de estímulo ao investimento para fomentar a atividade econômica. Nesta hora, será fundamental evitar o populismo tributário. O objetivo será estimular a atividade econômica e não resolver problemas estruturais que há anos são objeto de disputas políticas. Deve ser evitada toda tributação que desestimule a realização de investimentos, a manutenção de capital no país e a concessão de empréstimos em patamares competitivos com aqueles oferecidos pelos países que concorrem com o Brasil.
Além disso, pelo fato de os desafios que enfrentaremos serem inéditos, deve ser fomentada a cooperação entre entes federativos, com um cadastro único de contribuintes que permita a identificação e a quantificação das renúncias fiscais. Os entes federativos devem cooperar entre si. Fisco e contribuinte devem buscar formas de entendimento que promovam a segurança jurídica e gerem um ambiente favorável ao investimento.
Com o objetivo bem delineado de fomentar investimentos e promover a retomada do crescimento econômico, medidas de extrafiscalidade deverão ser implementadas. Cito algumas delas:
Um plano de desenvolvimento nacional que identifique vocações regionais, diferenciais competitivos, inteligência já acumulada e que possa ser fomentado por políticas tributárias adequadas;
Desoneração do investimento em construção de ativos de infraestrutura ampliando figuras como a do REIDI;
Viabilização de ampla forma de compensação entre débitos e créditos para dar eficiência na cobrança de créditos de dívida ativa e, com isso, reduzir o endividamento do Estado brasileiro de forma rápida e eficiente;
Criação de cadastro tributário único de contribuintes para identificar, quantificar e qualificar, periodicamente, as desonerações tributárias de todos os entes federativos;
Criação de métricas para avaliar incentivos tributários no País e critérios lineares de limitação, a exemplo do que existe para o ISS;[5]
Responsabilização gestores públicos que praticam a extrafiscalidadade ilícita;
Aumentar a progressividade do sistema tributário, melhor equilibrando a tributação sobre a renda e patrimônio e reduzindo sobre consumo;
Dar efetividade aos fundos setoriais com amplo plano de investimento e empregar os mais de R$ 250 bilhões de reais que vêm sendo represados nos últimos 20 anos;
Converter contribuições setoriais em dever de investimento setorial.
Essas mudanças tributárias podem ser associadas a muitas outras. É fundamental, porém, evitar o populismo fiscal e acadêmico, evitando a importação a crítica de modelos de tributação, que podem até ter sido bem sucedidos noutros países, mas que são incompatíveis com a complexidade do Estado brasileiro, organizado em uma Federação e que tem parte significativa das suas regras criadas pela jurisprudência dos tribunais superiores.
5. Proposições corretas, mas parciais: a extrafiscalidade no âmbito federal, estadual e municipal
A pauta que indiquei no tópico anterior, mesmo com alguma demora, foi em grande parte atendida pelo Governo Federal. Foram dezenas de atos normativos editados num curto espaço de tempo. Cito, abaixo, todos os que foram publicados desde o início de março até 15 junho deste ano:
Até agora, Estados e Municípios, em geral, não tomaram as mesmas medidas adotadas pelo Governo Federal, seguindo vigentes, na maior parte daqueles, os deveres de recolhimento dos tributos de suas competências. Especificamente quanto ao ICMS, há dificuldades específicas na concessão de diferimentos e isenções, decorrentes da a necessidade de celebração de convênio CONFAZ especificamente com esse fim.[6]
Apesar disso, é possível apontar algumas soluções tributárias já apresentadas pelo Governo do Estado e pela Prefeitura do Município de São Paulo.
Por meio do Decreto Estadual nº 64.789/2020, foram suspensos os protestos de débitos inscritos em Dívida Ativa por 90 dias. Além disso, foram prorrogadas as Certidões Positivas com Efeitos de Negativa (CPENs) cujo vencimento ocorreria entre 01/03/2020 e 30/04/2020, por meio da Resolução Conjunta SFP/PGE nº 01/2020.
A prefeitura do Município de São Paulo, por sua vez, suspendeu, por meio do Decreto 59.386/2020, as inscrições em dívida ativa por 30 dias, a inclusão de pendências no CADIN por 90 dias e os protestos de débitos inscritos em Dívida Ativa por 60 dias. Além disso, nesse mesmo ato normativo foi prevista a prorrogação, por 90 dias, das Certidões Negativas de Débitos e das Certidões Positivas com Efeitos de Negativas.
Quanto ao diferimento de tributos, reitero que para as optantes do Simples Nacional houve diferimento do pagamento das parcelas estadual e municipal de março, abril e maio em 90 dias. Quanto às demais empresas, permanecem vigentes todos os demais deveres tributários relacionados ao recolhimento de ISS e ICMS. A tributação de propriedade, doações e transferências permanece também inalterada.
6. Proposições corretas, mas parciais: as melhores práticas internacionais: medidas extrafiscais já adotadas e em estudo para enfrentamento da pandemia em todo o mundo
A OCDE, em estudo dirigido às administrações tributárias, listou possíveis medidas a serem tomadas para, no âmbito de suas competências, viabilizar essa transição. Dentre elas, cito as seguintes: (i) prorrogação de prazos para cumprimento de obrigações acessórias; (ii) diferimento de tributos; (iii) remissão de penalidades pelo descumprimento de deveres fiscais, bem como redução de juros incidentes nas cobranças por pagamentos realizados em atraso; (iv) planos de moratória e parcelamento de débitos; (v) facilitação de compensação e restituição de tributos; (vi) suspensão de medidas de fiscalização, que exigem apresentação de documentação pelos contribuintes; (vii) facilitação dos canais de comunicação entre fisco e contribuinte e (viii) flexibilização de obrigações, para que possam atender às diferentes dificuldades enfrentadas por cada um deles no cumprimento de obrigações fiscais.[7]
Em outro estudo publicado na mesma data, a organização listou medidas fiscais mais específicas para limitação do dano às atividades produtivas e econômicas, dentre as quais: (i) diferimento do pagamento de contribuições sociais e demais tributos incidentes sobre a folha; (ii) diferimento de tributos incidentes sobre o consumo e sobre a importação, especialmente no caso de bens e serviços necessários ao combate à pandemia; (iii) facilitação de tomada e recuperação de créditos de tributos incidentes sobre valor agregado, acompanhada de medidas para evitar fraudes fiscais; (iv) diferimento de tributos que não levam em conta, em sua mensuração, atividades econômicas correlatas e a capacidade econômica do contribuinte, tais como aqueles incidentes sobre a propriedade; (v) ampliação da possibilidade de compensação de prejuízos fiscais na apuração de tributação sobre a renda; (vi) benefícios fiscais aos setores responsáveis pelo combate à epidemia, em especial, os de serviços e equipamentos médicos e de desenvolvimento e venda de medicamentos; (vii) preparação para a criação de um ambiente fiscal favorável à retomada do crescimento econômico, inclusive por meio de incentivos fiscais e subsídios.[8]
Em estudo sobre medidas que vêm sendo adotadas por países da América Latina para enfrentamento da repentina queda de receita e para da suporte à continuidade das atividades econômicas pelas empresas nesse momento de confinamento e restrições de locomoção, o Banco Mundial também destacou a relevância do diferimento de tributos e de contribuições sociais e a simplificação de procedimentos para pagamentos de tributos, incluindo-se a possibilidade de cumprimento de obrigações acessórias e atendimento remoto pelas administrações tributárias.[9]
Vale destacar, também, levantamento do Insper, liderada por Vanessa Canado, sobre medidas fiscais que vêm sendo adotadas em todo mundo.[10] Os pesquisadores demonstram que a maior parte delas envolve diferimento de tributo (50% das medidas analisadas), havendo também redução da carga tributária (15,7%), diferimento de obrigações acessórias (11,4%), redução de encargos moratórios (9.9%), outras diversas (7,8%) e devolução de tributos (5,4%).
Todos estes dados permitem identificar um protocolo internacional de boas práticas da gestão tributária para fazer frente à Pandemia.
7. Proposições corretas, mas parciais: análise crítica da extrafiscalidade no combate aos efeitos da Pandemia
O Estado brasileiro possui ampla variedade de incidências tributárias e fez uso intenso destas competências para formulação de uma robusta política fiscal contra o ciclo de depressão econômica. Neste sentido, atendeu ao que se pode chamar de “protocolo de boas práticas tributárias”. Em termos de incentivo, agiu corretamente ao diferir e não simplesmente isentar tributos. Errou, contudo, ao não incluir o imposto sobre a renda das pessoas jurídicas e a contribuição social sobre o lucro líquido entre os tributos diferidos.
É fator negativo que precisa ser registrado: a impressionante demora em compreender a gravidade da crise e em formular as reações tributárias corretas. Além disso, Estados e Municípios, que não podem emitir dívida para compensar a respectiva redução de receitas, travam disputa com a União. Querem que esta faça frente à futura redução de receita. Ao fazer isso, não cooperam e estão demorando a reagir. A diligência em, corretamente, buscar cumprir os protocolos de distanciamento social não é acompanhada pela eficiência na dispensa de prazos de obrigações tributárias e desoneração dos tributos.
Por fim, hoje, ainda não há espaço para a formulação de críticas para as medidas que deverão ser editadas para fomentar a retomada da atividade econômica.
Num caso e noutro, o que temos é o amplo uso do tributo como instrumento de implementação de políticas setoriais. Há exercício da boa, velha e tão criticada, extrafiscalidade.
É fundamental que, diferente do uso errático e, não raro, irresponsável do tributo, se faça algo eficiente. Para isso, é recomendável que as políticas tributárias sejam de curto prazo, com fiscalização constante e mensuração da sua efetividade. É, ao fim e ao cabo, necessário que se cumpra a Lei de Responsabilidade fiscal e que cada uma das medidas não dure mais do que o tempo estritamente necessário.
8. Conclusões
A Pandemia causada pela COVID-19 abriu espaço fértil para redenção da extrafiscalidade tributária. Um amplo espetro de competências tributárias foi acionado para desonerar a atividade econômica, estimulando empresários a manter seus negócios, manter contratos de trabalho e, quando necessário, contrair empréstimos. Em sintonia com as medidas adotadas por mais de 50 países estudados e seguindo protocolos de ação editados pelo Banco Mundial e OCDE, o Brasil agiu usando a tributação para combater os efeitos nocivos do isolamento social sobre a atividade econômica.
As medidas tomadas estão corretas. Porém, são insuficientes. Havia possibilidade de suspender os tributos sobre a renda e a contribuição social sobre o lucro líquido que seguem sendo exigidos. Além disso, há enorme falta de coordenação entre os entes federativos. Aquilo que foi feito pela União deveria ter sido seguido pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, mas não foi integralmente.
Há duas razões para isso: a primeira é econômico-financeira, pois apenas a União pode emitir título da dívida pública e compensar a perda de arrecadação com empréstimos; a segunda é de ordem jurídico-tributária, pois as entidades subnacionais estão submetidas a regras que limitam a extrafiscalidade, como as autorizações do Conselho Nacional de Política Fazendária – SEFAZ, a Lei de Responsabilidade Fiscal e as alíquotas mínimas fixadas para os municípios.
É fundamental que todos os entes da Federação ajam de maneira coordenada, suspendendo a incidência de tributos de forma seletiva, para dar alívio de caixa a quem precisa e seguir tributando quem pode pagar. Trata-se de um diferimento dado no curso do exercício financeiro e não uma renúncia de receitas propriamente dita. Este dado é relevante, pois implica dizer que se mantém parte da receita fiscal prevista para o ano.
Paralelamente, deve-se suspender o dever de entregar obrigações acessórias em todos as esferas de tributação, assim como suspender prazos processuais e tudo mais que possa ser preclusivo e trazer prejuízos para contribuintes e para os próprios entes federativos.
Neste primeiro momento, é necessário que a inciativa privada perceba no Estado uma fonte de estabilidade e confiança. De onde poderão vir os recursos para isso: reservas internacionais e dúvida pública. O país tem reservas em valores muito superiores aos sugeridos aos países da OCDE. Além disso, o endividamento público interno, com SELIC a 2,25%, nunca foi tão barato.
Num segundo momento, será necessário recompor o equilíbrio financeiro do Estado e estimular a economia a voltar a crescer. Para isso, é imprescindível que haja crédito barato e abundante, além de foco em setores que têm enorme impacto no crescimento de curto e médio prazo como a infraestrutura. Mais do que isso, será necessário rever o ambiente de negócios para dar estabilidade e aumentar a confiança recíproca entre inciativa pública em privada.
A articulação de políticas fiscais – extrafiscalidade – será fundamental nesta primeira fase e também na segunda, portanto. Deverá, por isso, ser defendida e acompanhada de perto por todos os entes federativos e pela inciativa privada. As propostas de reforma tributária que pretendam acabar com a extrafiscalidade devem ser submetidas ao teste de realidade e reinventadas para que possam, efetivamente, mudar o sistema para melhor.
Mal estudada e compreendida, a extrafiscalidade é, apesar das críticas, um instrumento poderoso de ação estatal. Não raramente, é verdade, pode ser mal empregada. Este fato, porém, não deve justificar emendas à Constituição da República que pretendam suprimir dos entes federativos o poder de usar o tributo para implementar incentivos em variadas áreas da atividade econômica. Que se controle, avalie e fiscalize. É fundamental punir quem age ilicitamente.
Como diz o ditado popular, a diferença entre o remédio e o veneno é a dose. Que a extrafiscalidade seja bem utilizada, pois diante da gravidade da crise que se anuncia, o Estado Brasileiro não está na posição de quem possa renunciar a qualquer tipo de remédio.
Por fim...
Todo tipo de oportunismo pode surgir nos momentos de crise. Populismos acadêmicos e tributários são muito frequentes. Devem-se evitar com veemência soluções estruturais que tirem a possibilidade de o Estado usar o tributo para estimular a economia e promover emprego e desenvolvimento.
Usos equivocados da extrafiscalidade no passado devem ser corrigidos e aperfeiçoados. No combate à Pandemia, precisamos lançar mão de todos, absolutamente todos, os recursos de que dispõe o Estado para salvar pessoas, empregos e empresas. Não é tempo para se valer de fragilidades sociais para restringir a capacidade de ação do Estado. Só a união dos esforços de todos os entes federativos e da inciativa privada poderá reduzir os feitos perversos desta doença.
Parafraseando Camus, nos próximos meses, teremos apenas a COVID-19 e vítimas; cabe a nós, na medida do possível, não ser parte da doença.
[1] Professor de direito tributário e teoria do direito nos cursos de graduação, mestrado e doutorado da PUC-SP, Presidente do Instituto de Aplicação do Tributo – IAT e Advogado.
[2] De acordo com disposição do art. 155, § 2º, inciso III, da Constituição Federal, o ICMS poderá ser seletivo, “em função da essencialidade das mercadorias e serviços”. Há também previsão de seletividade para o IPI, que, nos termos do art. 153, § 3º da CF “será seletivo, em função da essencialidade do produto”.
[3] Tais como a Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais (DCTF) e a EFD-Contribuições. [4] Arts. 42 e 58 da Lei 8.981/1995 e 15 e 16 da Lei 9.065/1995. [5] O art. 156, § 3º, II estabelece caber à legislação complementar fixar as alíquotas máximas e mínimas do imposto. [6] Consideradas as disposições do art. 155, § 2º, XII, “g” da Constituição Federal, da Lei Complementar 24/1975 e do Convênio 169/2017. De acordo com este último (cláusula primeira): “A concessão unilateral pelos Estados ou Distrito Federal de moratória, parcelamento, ampliação de prazo de pagamento, remissão ou anistia, bem como a celebração de transação, relativamente ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias - ICM - e ao Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação - ICMS -, observará as condições gerais estabelecidas neste convênio.” O parágrafo único do dispositivo estabelece, então, que “A concessão de quaisquer destes benefícios em condições mais favoráveis dependerá de autorização em convênio para este fim especificamente celebrado.” [7] OECD, Forum on Tax Administration: Tax administration responses to Covid-19: Support for taxpayers. 16/03/2020. http://oe.cd/fta [8] OECD, Immediate tax policy responses to the Covid-19 pandemic – Limiting damage do productive potential. 16/03/2020. Website: www.oecd.org/tax [9] The World Bank, The economy in the times of Covid-19. LAC Semiannual Report;April 2020. Washington, DC: World Bank. https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/33555 [10] Disponível em https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2020/03/Mapeamento-Insper_COVID19-medidas-tribut%C3%A1rias-v7protegida.xlsx
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